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Extensão do hálux e o Mecanismo de molinete

Por Marcus Lima em 02 de dezembro de 2020

Artigo que fala sobre a extensão do hálux e mecanismo de molinete, um antigo conceito da biomecânica que, ao que parece, se perdeu um pouco.

 

Extensão do hálux e o Mecanismo de molinete

Sian Smale

 

Mês passado tivemos o foco no pé e complexo do tornozelo e já é hora de resgatarmos um velho conceito biomecânico: O Mecanismo de Molinete.

Temo que alguns conceitos chave tenham se perdido em nossos ensinamentos na medida em que nos movemos rumo à novas tendências.

Portanto, assim como gostei muito de escrever sobre o Sinal de Cloward e a pesquisa de 1959, vamos dar outro mergulho no passado.

O tempo agora é 1954, quando J.H. Hicks escreveu a respeito da aponeurose plantar e propôs um modelo biomecânico explicando quão diversa era a função de carga e descarga das articulações do pé.

Hicks (1954) discutiu 4 observações fundamentais sobre o que deveria normalmente ocorrer no pé durante a descarga do peso corporal quando a primeira articulação metatarsofalângica (MTF) entra em extensão:

  1. Aumenta a altura do arco medial longitudinal.
  2. Inversão do calcâneo.
  3. Rotação externa da perna (tíbia e fíbula).
  4. Surge uma banda rígida (a aponeurose plantar).

Representação da aponeurose plantar.

Penso que muitos clínicos concordariam que essas observações são ligadas à extensão do hálux, mas o que ele veio a entender através de mais investigação, em sujeitos vivos e cadáveres, é que essas observações (N.T: Listadas de 1 a 4 acima) ocorrem em ambas situações (N.T: Sujeitos vivos e cadáveres), concluindo, portanto, que o mecanismo não era primariamente devido à atividade muscular (Hicks., 1954, p.26).

O mecanismo de molinete se refere à função da anatomia na base do pé, especificamente a aponeurose plantar, ossos sesamóides, bases dos metatarsos e a inserção dessas estruturas sob a articulação metatarsofalângica (MTF).

O termo “molinete” na realidade é usado na navegação significando transportar ou levantar algo através desse mecanismo (N.T: Um exemplo na imagem abaixo, onde o molinete elétrico está ligado à âncora do barco).

Molinete elétrico ligado à ancora do barco.

Hicks e outros pesquisadores da época usaram a palavra molinete para descrever como a estrutura de arco e flecha da aponeurose plantar levanta o calcâneo e a primeira articulação metatarsofalângica (MTF) juntas quando o hálux entra em extensão.

O resultado destes ossos se movendo juntos é a elevação dos metatarsos formando o ápice de um triângulo e resultando na elevação do arco medial longitudinal.

Abaixo uma imagem que descreve como a base do hálux age como um molinete, enquanto a aponeurose plantar é a corda de um arco ligando o calcâneo às articulações MTF ao longo dos 5 dedos.

Extensão do hálux e o Mecanismo de molinete.

(N.T: Abaixo outra imagem ilustrando o mecanismo de molinete, creio que seja mais próxima do que de fato ocorre no mecanismo que está sendo ilustrado no artigo).

Extensão do hálux e o Mecanismo de molinete.

 

“A aponeurose plantar é uma forte banda elástica que cruza o pé longitudinalmente e conecta o calcâneo aos dedos.

Ela aparece como uma banda grossa e forte, do calcanhar ao mediopé, a partir daí ela se divide em 5 tiras que correm sob as cabeças dos metatarsos e se inserem no lado plantar da falange proximal de cada dedo” (Caravaggio, Pataky, Goulermas, Savage & Crompton., 2009, p.2491).

Aponeurose plantar - cadáver de um adulto.

Ca: Calcâneo; M: Medial; L: Lateral; C: Central. 

(N.T: Imagem acima retirada do artigo: The Plantar Aponeurosis in Fetuses and Adults: An Aponeurosis or Fascia? Int. J. Morphol., 35(2):684-690, 2017).

 

Marcha Normal

Quando o calcanhar atinge o solo no início da fase de apoio o tornozelo está em dorsiflexão.

Toque do calcanhar no solo no ciclo da marcha.

A partir desse ponto a tíbia…

“roda para dentro e o retropé ou complexo articular triplo (articulações subtalar, talonavicular e calcaneocuboidea) se move para uma posição mais evertida ou em valgo, enquanto que a articulação talocrural, ou articulação do tornozelo, faz uma flexão plantar” (Van Boerum & Sangeorzan., 2003).

O movimento dessas articulações cria um efeito de estiramento (N.T: Pre-load no original em inglês) na aponeurose plantar à medida que o pé prona em direção à fase de pé plano, ou apoio médio (Caravaggio, et al., 2009).

Quando o pé alcança a fase de apoio médio, a tensão na aponeurose plantar se reduz e o pé é capaz de absorver choque e se adaptar ao terreno através da supinação ou pronação do mediopé, dependendo da demanda.

Adaptação ao terreno através do mediopé.

(N.T: A imagem acima, retirada do livro “Cinesiologia do Aparelho Musculoesquelético- Donald A. Neumann, mostra a adaptação do pé ao terreno através da articulação transversa do tarso que se localiza no mediopé).

Uma vez que estamos nos últimos 30% da fase de apoio e nos preparamos para a saída dos dedos, o hálux começa a entrar em extensão o que novamente enrijece a aponeurose plantar e assiste com a supinação do pé (Caravaggio, et al., 2009; Kappel-Bargas, et al., 1998).

Durante o ciclo da marcha normal é requerido entre 45-55° de extensão (Neumann, 2013).  Caravaggio e associados (2009, p. 2498) também confirmaram que enquanto a aponeurose plantar se insere em todos os 5 dedos, através de suas ramificações, a maior parte da carga ocorre na 1ª articulação metatarsofalângica (MTF) e que esta carga se reduz com o movimento lateral, sendo o 5° dedo o que recebe menos.

À medida que aumenta a extensão na 1ª articulação MTF a altura do arco medial longitudinal também aumenta. O que Kappel-Bargas et al (1998) reportaram no entanto é que algumas pessoas têm movimento imediato quando o hálux estende enquanto outras têm movimento atrasado do arco.

Extensão do hálux e o mecanismo de molinete: Movimento do arco medial longitudinal.

Ambos comportamentos são diferentes do padrão normal. Mais de 20 anos atrás os autores do estudo citado especularam que o início precoce do movimento do arco com a extensão da 1ª articulação MTF predisporia o arco a maiores cargas tênseis, enquanto o movimento atrasado era mais comumente visto em pessoas com o ângulo aumentado do retropé e mais pronação do mediopé.

Ambos cenários resultam em um mecanismo de molinete ineficiente.

Gosto muito do diagrama abaixo, que descreve  a cinemática do plano horizontal do ciclo da marcha.

Diagrama do Ciclo da Marcha.

 

 

Como testamos o Mecanismo de Molinete?

Extensão do hálux durante a descarga de peso.

Você pode usar o teste do molinete para examinar a quantidade de extensão do hálux durante a descarga de peso ao levantar o hálux e avaliar o impacto que isso tem no arco (Bolga & Malone, 2004).

Em pacientes com fascite plantar, este teste é considerado positivo se reproduz dor no tubérculo calcâneo medial (Bolga & Malone., 2004, p. 79).

(N.T: Se quiser um ótimo material sobre o assunto acesse: Fascite Plantar. Ao final do artigo preparamos materiais extras em pdf dissecando as causas e o que diz a ciência sobre o assunto).

Independente de se ter ou não fascite plantar, este teste irá lhe dizer se o movimento do arco medial longitudinal é normal, precoce ou atrasado.

 

Outros fatores a se considerar:

  • Amplitude da dorsiflexão do tornozelo na descarga de peso.
  • Força muscular e resistência do tibial posterior. O maior suporte ativo do arco medial longitudinal é o tibial posterior, que age excentricamente durante a fase de absorção de impacto da marcha para prevenir o colapso do arco e eversão do pé (Bolga & Malone., 1998; Van Boerum & Sangeorzan., 2003). O tibial posterior não é o único músculo a se considerar:

    “Os efeitos combinados do flexor longo dos dedos, flexor longo do hálux, fibular longo e do tendão calcâneo permitem a supinação necessária para aumentar o mecanismo de molinete” (Bolga & Malone., 2004, p. 79).
    Extensão do hálux e o mecanismo de molinete: Estruturas que ajudam a sustentar o arco medial do pé.(N.T: No quadro em destaque podemos ver o tendão calcâneo e como os tendões desses músculos atravessam a parte medial do pé rumo a seus locais de inserção, criando uma alavanca que auxilia na sustentação do arco medial).

  • Ângulo do retropé/calcâneo. Como mencionado acima é importante para o retropé se mover a partir da supinação para a pronação e de volta à supinação. Entender a posição de partida e o movimento do calcâneo durante a flexão plantar com a extensão do hálux irá guiar nosso entendimento de como o arco medial se comporta durante a marcha.
  • Palpação – da 1ª articulação metatarsofalângica (MTF), da aponeurose plantar e dos tecidos moles dos arredores.

 

Onde deve ser Direcionado o Tratamento?

Rigidez na panturrilha, tendão calcâneo e na dorsiflexão do tornozelo são fatores de risco para a sobrecarga da fáscia plantar.

Cheng et al (2008) estavam interessados em um entendimento da relação entre ângulos de dorsiflexão, força do tendão calcâneo, o impacto na fáscia plantar e o mecanismo de molinete para ajudar a direcionar estratégias de tratamento que reduzissem o estiramento da fáscia plantar na fascite.

Com seu estudo eles descobriram que 2/3 do estiramento da fáscia plantar é atribuido à extensão do hálux e o terço restante à força do tendão calcâneo.

Eles confirmaram que sob carga a região de stress máximo da fáscia plantar é próxima ao tubérculo calcâneo medial (2208, p. 1942), o que se correlaciona com a apresentação clínica comum de dor medial no calcâneo durante a descarga de peso.

Os resultados mostraram que maiores cargas na fáscia plantar ocorrem sob o primeiro dedo e se reduzem quando se movem para o 5° dedo, o que pode oferecer uma explicação de porque as pessoas descarregam o peso corporal na borda lateral do pé quando têm fascite plantar ou dor no dedo.

Mas se a marcha ocorre sem extensão do hálux, não é aplicada pressão suficiente na aponeurose plantar para efetivamente levantar o arco medial longitudinal, o que pode colocar o pé em uma posição biomecanicamente desvantajosa, com um mecanismo de molinete ineficiente.

Portanto, retreinar a flexão plantar com pressão através do hálux é importante para a biomecânica normal.

 

Resumo

Pontos chave:

  • Amplitude de movimento ativa e passiva são fundamentais.
    • Tensão na aponeurose plantar ocorre através da extensão do hálux e dorsiflexão do tornozelo.
  • Analise a postura estática e dinâmica.
    • É uma boa ideia observar a postura do pé de nossos pacientes durante o apoio ortostático e a marcha. Analisando o pé de frente, de lado e por trás para entender a “postura de repouso X a postura dinâmica”.
    • Quando analisar a postura estática, considere mais se o pé está pronado ou não. Olhe o pé por trás e meça o ângulo do retropé para entender que impacto a posição de repouso do calcâneo tem no mecanismo de molinete.
    • Quando olhar o pé de lado é fácil de perceber se a 1ª articulação MTF não tem amplitude de movimento de extensão, o arco ficará achatado.
    • Lembre-se que postura não é igual a dor.
  • Não se esqueça dos músculos.
    • Músculos têm a capacidade de influenciar a altura do arco medial longitudinal, incluindo o tibial anterior, tibial posterior, fibulares e gastrocnêmio.
  • Analise acima e abaixo.
    • Bolga & Malone (2004) fizeram notas para enfatizar que a postura estática e dinâmica do pé pode ser influenciada pelo controle neuromuscular proximal, como fraqueza do glúteo médio, rigidez da dorsiflexão do tornozelo e do tendão calcâneo  fraqueza do tibial posterior. Portanto, lhe encorajo a manter em mente a extensão do hálux, certifique-se de ver o quadro geral também.

O mecanismo do molinete, mais conhecido como o movimento do arco medial longitudinal é essencial para absorção de impacto e dissipação de forças através do pé. Isso explica como o pé pode agir como uma alavanca rígida e um absorvedor de impacto adaptável durante a fase de apoio da marcha.

O objetivo desse artigo foi relembrar alguns antigos conceitos anatômicos e biomecânicos para lembrá-lo o quão legal o pé realmente é e quão multifuncionais as articulações, ligamentos e estruturas ativas do pé são, agindo juntas para permitir uma marcha sincronizada e sem esforço.

 

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Referências 

Bolgla, L. A., & Malone, T. R. Plantar fasciitis and the windlass mechanism: a biomechanical link to clinical practice. Journal of athletic training, 2004, 39(1), 77. 

Caravaggi, P., Pataky, T., Goulermas, J. Y., Savage, R., & Crompton, R. A dynamic model of the windlass mechanism of the foot: evidence for early stance phase preloading of the plantar aponeurosis. Journal of Experimental Biology, 2009, 212(15), 2491-2499.

Cheng, H. Y. K., Lin, C. L., Wang, H. W., & Chou, S. W. Finite element analysis of plantar fascia under stretch—the relative contribution of windlass mechanism and Achilles tendon force. Journal of biomechanics, 2008, 41(9), 1937-1944.

Gelber, J. R., Sinacore, D. R., Strube, M. J., Mueller, M. J., Johnson, J. E., Prior, F. W., & Hastings, M. K. Windlass mechanism in individuals with diabetes mellitus, peripheral neuropathy, and low medial longitudinal arch height. Foot & ankle international, 2014, 35(8), 816-824.

Hicks, J. H. The mechanics of the foot: II. The plantar aponeurosis and the arch. Journal of anatomy, 1954, 88(Pt 1), 25.

Kappel-Bargas, A., Woolf, R. D., Cornwall, M. W., & McPoil, T. G. The windlass mechanism during normal walking and passive first metatarsalphalangeal joint extension. Clinical Biomechanics, 1998, 13(3), 190-194.

Lucas, R., & Cornwall, M. Influence of foot posture on the functioning of the windlass mechanism. The Foot, 2017, 30, 38-42.

Maitland, G. D. Peripheral manipulation. Butterworth-Heinemann, 1977.

Neumann, D. A. Kinesiology of the Musculoskeletal System-E-Book: Foundations for Rehabilitation. Elsevier Health Sciences, 2013.

Van Boerum, D. H., & Sangeorzan, B. J. Biomechanics and pathophysiology of flat foot. Foot and ankle clinics, 2003, 8(3), 419-430.


Artigo original: Anatomy 101 – The Windlass mechanism & great toe extension.

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