Um tópico que já vem sendo comentado há bastante tempo é o de Ativação Muscular e um dos campeões nesse quesito é o glúteo máximo, seguido do glúteo médio, com o pobre glúteo mínimo sendo relegado ao ostracismo.
O tópico revestiu-se de tanta importância que até um termo próprio surgiu nos últimos anos: Amnésia do Glúteo, Glute Amnesia em inglês, cunhado pelo conhecido pesquisador canadense Dr. Stuart McGill (McGill, 2007). Ele coloca esse termo dentro de um contexto de dor lombar, McGill é reconhecido como especialista no assunto.
McGill cunhou o termo baseado no trabalho do neurologista checo Vladimir Janda. Ele descreve em seu livro como cunhou o termo (McGill, 2007, pág. 110):
“Ao medir grupos de homens com problemas lombares crônicos durante tarefas relacionadas a agachamentos, era claro que eles tentavam cumprir este movimento articular básico e padrão motor de extensão do quadril enfatizando os extensores das costas e os isquiotibiais – eles pareciam ter esquecido como usar o complexo glúteo. Restrições perceptíveis nos flexores do quadril podem ou não estar presentes, mas sem questionamento os glúteos não eram recrutados em nível necessário para poupar as costas e promover um melhor desempenho. Eu me refiro a isso como “amnésia glútea”.
A relação pode ser de causa: Falta de ativação glútea e movimento no quadril gera mais movimento na coluna lombar.
Ou uma relação de consequência: Indivíduos com dor lombar diminuem a ativação do glúteo e perdem movimento no quadril.
Apesar de a hipótese soar bem, ainda não existe um consenso nas evidências de que isso realmente ocorre, o último Guideline da JOSPT, de 2012, nem sequer menciona o glúteo ou o quadril como fatores implicados na dor lombar.
Outro motivo que é frequentemente citado pelos que advogam os exercícios de ativação do glúteo máximo é o que se convencionou chamar “Dominância Sinergística”, uma alteração nos padrões de recrutamento neuromuscular.
Isso faz com que a ação de um sinergista seja mais dominante do que a de outros músculos que participam do movimento.
Essa é uma situação que pode ocorrer quando os isquiotibiais se tornam dominantes na ação do controle do quadril no plano sagital (desaceleração da flexão e aceleração da extensão). Shirley Sahrmann aponta que os isquiotibiais são extremamente suscetíveis à síndrome de sobrecarga quando se tornam dominantes devido à participação inadequada (leia-se alteração no recrutamento neuromuscular ou “ativação”) do glúteo máximo (assim como dos abdominais, rotadores do quadril e até mesmo o reto femoral).
Quando o sinergista é fraco (glúteo), o estiramento muscular (dos isquiotibiais) é provavelmente o resultado de demandas excessivas (Sahrmann, 2013).
Inserções Proximais → Lado posterior do ílio, sacro e cóccix, ligamentos sacrotuberositários e sacroilíaco posterior, assim como na fáscia adjacente.
Inserções Distais → Na banda iliotibial da fáscia lata e na tuberosidade glútea no fêmur.
Visão do glúteo máximo, isolado, nos 3 planos de movimento: Sagital, Frontal e Transverso (respectivamente). Podemos notar que pela arquitetura do músculo ele possui uma grande alavanca para atuar nos 3 planos.
Inserções Proximais → Superfície externa do ílio.
Inserções Distais → Parte lateral do trocânter maior do fêmur.
Visão do glúteo médio, isolado, nos 3 planos de movimento: Sagital, Frontal e Transverso (respectivamente). Podemos notar que pela arquitetura do músculo e direção das fibras talvez o seu papel no plano transverso seja menor do que nos outros dois planos.
Inserções Proximais → No ílio, ligeiramente anterior ao glúteo médio. É o músculo mais profundo do complexo glúteo.
Inserções Distais → Parte anterolateral do trocânter maior do fêmur.
Visão do glúteo mínimo, isolado, nos planos Sagital e Frontal (respectivamente), o glúteo mínimo não aparece na visão superior da pelve. Podemos notar que se trata de um músculo pequeno, localizado em uma camada profunda. Assim como o glúteo médio talvez o seu papel no plano transverso seja menor do que nos outros dois planos, embora seu tamanho não o dote de grande capacidade de gerar/frear movimento.
De acordo com a anatomia tradicional o glúteo máximo é um extensor e rotador externo do quadril, alguns livros trazem o papel na abdução. O glúteo médio e o glúteo mínimo são abdutores do quadril, alguns livros colocam a função das fibras anteriores do glúteo médio como rotadoras internas do quadril, enquanto que as fibras posteriores fazem a rotação externa.
As ideias colocadas a seguir são baseadas na visão do americano Gary Gray, fundador do instituto que leva seu nome, Gray Institute. Gray revolucionou a concepção sobre a anatomia humana, sobretudo a função muscular, no final da década de 70. Ele tem uma frase que se tornou muito conhecida e expressa esta maneira de pensar:
“A Quando o pé toca o solo tudo muda”.
Uma das mudanças na maneira de se pensar a função muscular é a importância dada à função excêntrica, o que na nomenclatura usada por ele chama-se “Load”, cuja tradução aproximada seria “carga” ou “carregar”, se referindo à carga excêntrica colocada aos músculos ao ter de lidar com as diferentes tarefas que executamos sofrendo a ação das forças físicas, a gravidade sendo a mais óbvia delas.
Outra grande mudança é sempre considerar o que o músculo ou grupo de músculos está fazendo nos 3 planos de movimento, no momento em que se analisa a função.
Relembrando:
Usemos o exemplo do ciclo da marcha, o mais comum de se encontrar já que a maior parte de nós se desloca caminhando, mas podemos aplicar esse raciocínio a qualquer movimento:
1 – Considerar a função excêntrica (de freio, desaceleração) e a concêntrica (de aceleração);
2 – Pensar nos 3 planos de movimento. O que faz o (s) músculo (s) no movimento analisado nos planos sagital, frontal e transverso? O músculo sempre terá um papel a desempenhar em cada um dos planos de movimento.
Abaixo uma imagem que resume o ciclo da marcha (Neumann, 2011).
Usando como base o ciclo da marcha com suas as respectivas fases, Chuck Wolf (Wolf, 2017) elaborou um quadro com as funções musculares nos três planos de movimento. A tabela analisa até os 60% do ciclo da marcha mostrado na imagem acima (até a fase de saída dos dedos).
Não faz a análise, portanto, da fase de balanço na marcha.
Diversos exercícios são empregados com a finalidade de ativação glútea, basta uma busca pelo termo “Ativação do glúteo” ou seu equivalente em inglês “Glute activation”, que seremos soterrados de informações.
Os mais comuns são as variações de “ponte” e “extensões de quadril em 4 apoios” visando glúteo máximo.
E as progressões de abdução do quadril no solo e deslocamentos com borrachas para ativação do glúteo médio.
O que estas progressões de exercício têm em comum é o foco na função concêntrica do complexo glúteo, desconsiderando a função excêntrica de desaceleração.
A seguir uma sugestão de uma série de progressões que enfatizam a função de desaceleração do quadril nos 3 planos de movimento, tendo como alvo todo o complexo glúteo. A questão da elaboração de exercícios só é limitada pela criatividade, basta que se saiba qual é a ação do complexo muscular que se quer ativar; Lembrando:
→ Desaceleração da flexão do quadril no plano sagital;
→ Desaceleração da adução do quadril no plano frontal;
→ Desaceleração da rotação interna do quadril no plano transverso;
Sendo assim todas as progressões a seguir incorporam essas 3 ações simultaneamente, como mostrado na imagem abaixo.
Posição inicial: Com um pé empurrando contra uma parede ou uma caixa (o que de certa forma talvez aumente a ativação do quadril no plano sagital).
→ A tarefa consiste em levar a mão em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que haja a ativação triplanar excêntrica do complexo glúteo.
→ A colocação de um alvo como referência facilita a tarefa proposta (isso vale para todas as progressões mostradas no artigo).
A colocação de um alvo faz com que o foco do executante seja na tarefa (em direção ao alvo). O peso no caso do exemplo da imagem abaixo também se presta a este objetivo: Tocar o peso no alvo.
→ Ao se utilizar dessa maneira de ver o exercício: Tarefa consciente – Reação inconsciente a execução e a retenção do movimento (isto é, a capacidade de executá-lo outras vezes no futuro, o aprendizado motor) são melhores.
→ Isto foi demonstrado muitas vezes (Wulf, 2013; Kim et al. 2017), em que se comparam dicas verbais externas (foco na tarefa) com dicas verbais internas (foco nas partes do corpo). Publiquei em meu blog, Limatreinamento, um artigo falando sobre o tema há alguns anos: “Ciência e Aplicação das Dicas Verbais” e breve colocarei mais sobre o tema.
Posição inicial: Com um pé colocado sobre um suporte em um step ou uma caixa (em um espaldar, etc.).
→ A tarefa consiste em levar a mão em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que haja a ativação triplanar excêntrica do complexo glúteo.
Posição inicial: Com os pés no solo, em base assimétrica.
→ A tarefa consiste em levar a mão em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que haja a ativação triplanar excêntrica do complexo glúteo.
Posição inicial: Com os pés no solo, em base simétrica.
→ A tarefa consiste em dar uma passada à frente e levar a mão em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que haja a ativação triplanar excêntrica do complexo glúteo.
Posição inicial: Com os pés no solo, em base simétrica.
→ A tarefa consiste em dar uma passada atrás e levar a mão em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que haja a ativação triplanar excêntrica do complexo glúteo.
Nada impede que se adicione resistência externa aos exercícios. A questão que fica é: Qual o limite de resistência externa que passa a caracterizar o movimento com o que tradicionalmente denominamos como um “exercício de força”? Alguns propõem que tudo é força, em maior ou menor grau, desprezando a denominação “exercício de ativação”.
Será apenas uma questão semântica? Ou algo importante? Confesso não ter uma opinião completamente formada.
Vejamos alguns exemplos da adição de resistência externa.
Posição inicial: Com os pés no solo, em base simétrica.
→ A tarefa consiste em dar uma passada à frente e levar o kettlebell em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que coloquemos uma ênfase em força excêntrica triplanar do complexo glúteo.
Posição inicial: Com os pés no solo, em base simétrica.
→ A tarefa consiste em dar uma passada à frente e levar os dois kettlebells em direção a uma posição mostrada na imagem à direita (uma posição lateral ao pé colocado à frente e em direção ao solo).
→ Isso faz com que coloquemos uma ênfase em força excêntrica triplanar do complexo glúteo.
A ideia proposta neste artigo, escrito baseado nas ideias de Gary Gray, é treinar o complexo glúteo a desempenhar sua função propondo uma tarefa que se assemelhe ao que ele de fato foi projetado para realizar, esperando que assim haja uma transferência maior para as tarefas cotidianas/esportivas.
A intenção não é a de menosprezar os exercícios mais tradicionais que vem sendo usados, como as variações de ponte ou exercícios em base quadrúpede. Até porque existem evidências de que este tipo de exercícios: Ativações isométricas, têm o potencial para modificar a área do cérebro ligada ao glúteo máximo (neuroplasticidade do córtex motor). Isto é, aumentar a eficiência de ativação e função desse músculo (Fisher et al. 2016).
Talvez as duas estratégias tenham lugar dentro do processo de treinamento e reabilitação. Exercícios no solo, mais simples, isométricos podem vir em primeiro lugar, com a função de “despertar a consciência” da área alvo, o complexo glúteo, no caso, para em seguida empregarmos ativações que treinem o complexo glúteo para sua tarefa excêntrica de desaceleração e por fim colocarmos sobrecarga a fim de deixarmos esse complexo glúteo “mais forte”.
Se você quiser acessar a versão em PDF deste artigo confira no link:
Fisher, B.E., Southam, A.C., Kuo, Y.L., Lee, Y.Y., Powers, C.M. Evidence of altered corticomotor excitability following targeted activation of gluteus maximus training in healthy individuals. Neuroreport, 2016.
Kim, T., Jimenez-Diaz, J., Chen, J. The effect of attentional focus in balancing tasks: A systematic review with meta-analysis. Journal of Human Sport and Exercise, 2017.
Low Back Pain: Clinical Practice Guidelines Linked to the International Classification of Functioning, Disability, and Health from the Orthopaedic Section of the American Physical Therapy Association. J Orthop Sports Phys Ther,. 2012.
McGill, S.M. Low back disorders: Evidence based prevention and rehabilitation, Second Edition. Human Kinetics Publishers, Champaign, IL, U.S.A, 2007.
Neumann, D. A. Cinesiologia do Aparelho Musculoesquelético: Fundamentos para Reabilitação 2ª Edição. Elsevier, 2011.
Sahrmann S. Diagnosis and Treatment of Movement Impairment Syndromes. Oxford, UK: Elsevier Health Sciences; 2013.
Wolf, C. Insights into Functional Training: Principles, Concepts, and Application. On Target Publications, Santa Cruz, California, 2017.
Wulf, G. Attentional focus and motor learning: A review of 15 years. International Review of Sport and Exercise Psychology, 2013.