Ícone de fechar

Prevenção de Lesões nos Isquiotibiais – Parte 1

Por Marcus Lima em 23 de fevereiro de 2021

Artigo que aprofunda aspectos relacionados à prevenção de lesões nos isquiotibiais, desde fatores relacionados à causa até às intervenções.

Diferentes termos foram usados como sinônimos para designar a mesma coisa: Tiros de velocidade, corrida de velocidade ou sprint, o termo em inglês utilizado pelo autor.

 

Prevenção de Lesões nos Isquiotibiais: Uma Abordagem Holística

Kyle Davey

 

Foram-se os dias em que um único fator era apontado como o Santo Graal para a prevenção de lesões nos isquiotibiais. Elas são multifatoriais, significando que os profissionais precisam ter uma abordagem ampla para sua prevenção.

A única coisa pior do que um estiramento nos ísquios é mais do que um. Infelizmente, as lesões de isquiotibiais são notórias por serem problemas consistentes, com uma taxa de recidiva tão alta quanto 63% (1). Uma única lesão nessa área pode arruinar uma carreira atlética, tirando o indivíduo dos treinos e competições, no presente e futuro.

Um artigo recente de Lahti et al. descreveu uma abordagem individualizada única para a prevenção de lesões nos isquiotibiais que pode ser implementada em equipes (2). Acredito que a intervenção estava em andamento quando iniciou a Pandemia de COVID-19 e o estudo infelizmente foi encerrado, então o grupo publicou o protocolo com a intenção de terminá-lo quando acabar a pandemia.

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Artigo de Lahti et al. 2020.

A intervenção parece promissora, cobrindo muitos tópicos, incluindo: Mobilidade, mecânica do sprint, força muscular, entre outros. Será interessante ver o projeto ser finalizado e entender o quão efetivo vai ser.

Neste meio tempo, ficamos com a abordagem da intervenção, as 2 novas avaliações que os autores fizeram e os pensamentos que o artigo provoca.

 

Análise e Intervenção: O Exercício é a Reabilitação e a Reabilitação é o Exercício

Um aspecto impressionante do artigo de Lahti et al. é como a intervenção aborda os jogadores considerados em risco de lesão nos ísquios. O que eles fazem?

O mesmo que os que não estão no grupo de risco, só que mais.

O protocolo exige que todos os atletas recebam uma dose saudável de: Amplitude de movimento, força muscular, controle lombopélvico e trabalho de tiros de velocidade (sprints), mas aqueles que preenchem o critério de estarem em risco de lesão nos isquiotibiais recebem uma dose em dobro de toda essa carga de trabalho, em comparação aos demais.

Isso ressalta a necessidade de um programa de treinamento balanceado e bem planejado. A fórmula mágica não existe, muito menos um super-exercício que protege contra estiramentos. Em vez disso, existem qualidades e competências básicas que deveriam ser praticadas, mantidas e melhoradas ao longo da temporada. Ao invés de esperar por uma bandeira vermelha, os profissionais podem cortar estes problemas na raiz, ao treinar essas qualidades antes dos problemas aparecerem.

Bandeira vermelha

 

Uma Apresentação Assimétrica Exige uma Carga Assimétrica

Assimetrias na produção e força são consideradas fatores contribuintes na lesão dos isquiotibiais (3, 4). Ao menos um estudo fez a conexão direta entre força muscular excêntrica dos isquiotibiais e risco de lesão (5).

Os autores testaram a força do glúteo como extensor do quadril e dos isquiotibiais em velocistas de elite e fizeram o acompanhamento por um período de 1 ano. Cada uma das 6 lesões observadas aconteceram nos isquiotibiais mais fracos. Portanto, capacidades de produção de força simétricas parecem ser protetivas contra lesão.

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Lesão nos isquiotibiais de Usain Bolt.

Como mencionado anteriormente, o protocolo de Lahti et al. exige que vários aspectos do desempenho sejam avaliados. Se existirem assimetrias em força muscular ou amplitude de movimento (ADM), os atletas fazem trabalho extra na perna deficitária.

Não existe intervenção mágica para “corrigir” assimetrias; ao invés, todos atletas fazem trabalho de força muscular e mobilidade, atletas com assimetrias simplesmente fazem mais.

Diagnosticar de forma equivocada e programar mais trabalho para um perna pode na realidade causar assimetrias, portando, medidas válidas e confiáveis são críticas. Os velhos testes musculares, cheios de subjetividade não contam como medida válida e provavelmente não irão convencer ninguém a fazer 3 séries de um levantamento terra unilateral em uma perna e 1 série na outra.

(N.T: Abaixo a execução do levantamento terra unilateral com barra).

A dinamometria isocinética ou outra avaliação válida e confiável que mostre objetivamente a capacidade de produção de força é a melhor maneira de fazer com que os atletas comprem a ideia, estar bem informado como profissional e prescrever intervenções eficazes de treinamento.

Dinamometria isocinética.

 

O Teste de Jurdan

Quanta amplitude de movimento (ADM) é necessária para reduzir o risco de lesão?

Essa questão não é respondida atualmente, mas podemos assumir com segurança que possuir mobilidade suficiente para estar nas posições de velocidade máxima permite ao atleta alcançar efetivamente as ditas posições e, portanto, é protetivo contra lesões nos isquiotibiais. Um pouco de ADM extra para se assegurar de que o atleta não alcance a amplitude máxima a cada passada provavelmente é algo bom.

Os autores do artigo (Lahti et al. mencionado anteriormente) introduziram o teste de Jurdan, uma nova avaliação de mobilidade específica para a corrida de velocidade, batizada com o nome de seu criador, Jurdan Mediguchia.

O teste posiciona o atleta em uma posição artificial de saída dos dedos do chão na corrida de velocidade (N.T: Toe-off em inglês), isso se torna claro quando rodamos a figura em 90º, e avalia a amplitude de movimento dos isquiotibiais da perna de balanço e a extensibilidade do quadril da perna de apoio (sempre em relação à mecânica da velocidade máxima).

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Teste de Jurdan para amplitude de movimento do joelho e quadril.

(N.T: Teste de Jurdan: É calculado um escore ao subtrair o ângulo da tíbia da perna de cima pelo ângulo da coxa da perna de baixo. No caso da figura: 52 – (-11) = 63. Os 2 ângulos são relativos à linha horizontal. A figura abaixo, retirada e adaptada do artigo original de Lahti et al., sobre o qual o autor se baseia, retrata melhor).

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Outra visão do Teste de Jurdan para amplitude de movimento do joelho e quadril.

Para a posição inicial do teste, o atleta deita em posição supinada na maca com um retroversão pélvica (N.T: Rotação posterior), a perna de baixo fica pendurada de maneira passiva para fora da maca e o fêmur da perna de cima está vertical. A partir dessa posição, o indivíduo estende o joelho da perna de cima o máximo possível, enquanto mantem a lombar visivelmente plana sobre a maca.

A pontuação ideal ainda não existe, já que o teste é novo, mas existem implicações obvias: Se o indivíduo não consegue estender o joelho até uma posição desejada, então a mobilidade dos isquiotibiais é um problema, pode aumentar o risco de lesão e deve ser tratada.

Além disso, sem a ADM adequada no joelho ou no quadril as oportunidades de movimento (N.T: Affordances) são limitadas e os atletas não irão alcançar a cinemática de velocidade adequada, deixando o profissional frustrado e o atleta mais lento. Talvez essa seja uma causa para a cinemática traseira (N.T: Backside) crônica: A amplitude de movimento (ADM) no quadril ou no joelho simplesmente não está disponível para que o atleta desempenhe a mecânica ideal na parte da frente (N.T: Frontside).

Esteja consciente de que a mesma pontuação pode ser alcançada através de duas estratégias de movimento. Por exemplo, um ângulo na tíbia de 60º – (-10º) de extensão do quadril, rende uma pontuação de 70º, assim como um ângulo na tíbia de 73º – 3º de flexão do quadril. Essa última circunstância irá ocorrer se o atleta não for capaz de estender o quadril (N.T: Ficando com o mesmo em uma posição flexionada de 3º, quando está deitado na maca na posição do teste).

 

O Método Kick-back

Se você está lendo este artigo, não preciso convencê-lo de que a mecânica do sprint importa.

Lahti et al. apresentaram um novo método para quantificar a mecânica da parte da frente x mecânica da parte de trás: A pontuação kick-back.

(N.T: Não há uma boa tradução para kick-back, portanto ficou no original em inglês).

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Método kick-back para determinar a mecânica do sprint.

A pontuação é calculada ao somar os ângulos do quadril da mesma perna: Quando o pé toca o chão na aterrissagem e quando o pé deixa o solo na propulsão.

Maiores pontuações indicam uma mecânica frontal maior. Por exemplo, a atleta no alto da figura alcançou uma pontuação de 168, enquanto que a da parte de baixo pontuou 133.

(N.T: A figura abaixo, retirada e adaptada do artigo original de Lahti et al., sobre o qual o autor se baseia, retrata bem a diferença entre a mecânica considerada ideal e aquela abaixo do ideal).

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Outra imagem do método kick-back de avaliação da mecânica do sprint.

Embora não haja uma resposta definitiva a essa altura, a hipótese é que a mecânica da parte de trás aumente o risco de lesão mais do que a da parte da frente. A pontuação kick-back fornece um método objetivo para acompanhar o progresso de melhoras técnicas e permite aos profissionais separar os atletas em grupos de dominância, parte da frente, parte de trás, para os propósitos de treinamento.

 

Exposição à Altas Velocidades

Velocistas normalmente fazem tiros de velocidade máxima semanalmente, mas atletas de esportes de equipe não alcançam regularmente a velocidade máxima. Malone et al. (6) encontraram uma relação em forma de U entre o volume de tiros em alta velocidade e risco de lesão nos isquiotibiais.

Pouca exposição à tiros (N.T: Sprints) de alta velocidade aumentam a possibilidade de lesão nos ísquios, assim como exposição em demasia. Parece que existe um meio termo que oferece proteção.

Parece fazer sentido em um nível intuitivo e fisiológico. Minha mãe sempre me disse que muito de algo bom pode ser ruim e o sprint em si é um exercício excêntrico para o grupo dos isquiotibiais, isso será discutido em maiores detalhes mais adiante.

(N.T: Na verdade existem controvérsias a respeito desta afirmação de que os isquiotibiais trabalhem de forma excêntrica na corrida de velocidade. Futuramente, traremos um conteúdo do holandês Frans Bosch sustentando que o papel dos isquiotibiais na corrida de velocidade é isométrico).

O único problema é não termos um livro que nos diga exatamente como programar corridas de velocidade para prevenir lesões. O quanto é demasiado? O quanto é insuficiente?

Os autores do artigo de Malone et al. Destacam 2 fatores importantes:

1 – Atletas com altas cargas de treinamento crônicas estão em risco reduzido e;

2 – Jogadores que experimentam variações semanais muito grandes em corridas de alta velocidade estão em maior risco.

Em outras palavras, trabalhos de alta velocidade feitos consistentemente criam uma robustez contra a lesão nos isquiotibiais, enquanto fazer muito pouco, seguido de fazer um monte aumenta o risco.

 

Classificar o treinamento de Força pelo Ângulo Articular

É bem conhecido que adaptações do treinamento de força muscular são específicas ao ângulo articular e alguns exercícios fortalecem uma amplitude de movimento (ADM) em particular mais do que outros. Esse é o motivo da regra geral de treinar a amplitude total, para que se tenha ganhos de força na maior ADM possível.

Lahti et al. separaram o treino da extensão do quadril em 3 categorias:

  • 0-60º (posição estendida): Hip thrust, ponte, extensão das costas.

(N.T: O “hip thrust”, não passa de uma extensão de quadril com carga e as costas apoiadas em um banco. Na sequência, o vídeo mostra 3 diferentes formas de fazer o exercício denominado, em uma tradução livre do termo “back extensions”, extensão das costas. A primeira forma, mais focado na extensão do quadril, a segunda na extensão da coluna e a terceira uma mistura de ambos).

 

  • 60-90º (amplitude média): Levantamento terra, terra com barra hexagonal, empurrar o trenó (alto), step up (alto).

(N.T: Abaixo, os exercícios de empurrar o trenó-alto e o da subida no degrau, step-up  em inglês, alto).

 

  • 90-120º (profundo): Variações de agachamento em base alternada, terra com joelhos semi-flexionados (terra romeno), empurrar o trenó (baixo).

(N.T: Abaixo o levantamento terra com os joelhos semi-flexionados, ou terra romeno e o exercício de empurrar o trenó-baixo).

Qual o valor de categorizar assim os exercícios? Talvez eles promovam mais transferência em ângulos articulares específicos.


N.T: Temos de nos perguntar: Transferência para quê? O autor do artigo não deixa claro até o momento, mas façamos um breve resumo das Leis de Transferência.

Para que o exercício treinado se transfira para determinado habilidade ou movimento deve existir ao menos 1 dos seguintes fatores:

1 – Coordenação inter e intramuscular semelhantes.

2 – Vetores de força, ângulo articular ou tipo de contração parecidos.

3 – Similaridade no sistema de produção de energia.

4 – Resposta sensorial semelhante.

5 – Intenção de movimento parecida (como na posição final do exercício, por exemplo).


Por exemplo: Nos passos iniciais da aceleração – seja do bloco ou de uma largada com 2 pontos de contato (N.T: Largada em pé) – o joelho e o quadril exibem uma maior amplitude de movimento durante o contato com o solo do que na mecânica de velocidade com o corpo ereto, terminando em completa ou quase completa extensão do quadril, ao menos pelos primeiros passos.

Mecânica da Aceleração 100m feminino

Portanto, todas as 3 categorias de exercícios são aplicáveis, já que o quadril se move por todas 3 amplitudes de movimento. Se o treino de força negligencia alguma dessas amplitudes, melhoras na aceleração podem ser comprometidas.

De maneira similar, a mecânica da parte da frente do corpo na velocidade máxima pede o joelho da perna de balanço relativamente alto na saída dos dedos do chão, com a coxa a mais ou menos 90º. Talvez exercícios nas categorias de amplitude “profunda” e “amplitude média” sejam mais apropriados para construir a base de força muscular necessária para alcançar alta velocidade angular da coxa, quando o pé viaja para baixo para iniciar contato com o solo.

Corrida em velocidade máxima.

(N.T: Agora o autor deixa mais claro a questão “transferência para quê?” Ao que parece, a resposta é: Aceleração e Velocidade Máxima. Fazer os indivíduos correrem mais rápido no final das contas. Temos de fazer com que os exercícios prescritos passem pelo crivo dos 5 itens citados anteriormente, a fim de ver se vai haver transferência).

Além disso, exercícios para os isquiotibiais são categorizados em “joelho sobre o quadril” e “quadril sobre o joelho”.

 

“Quadril sobre o joelho”: Descreve movimentos em que o quadril estende com um ângulo relativamente fixo do joelho.

Terra romeno, puxadas na polia com a perna reta e isométricos com o quadril em uma posição estendida se encaixam nessa categoria. Estes exercícios parecem imitar os extensores do quadril direcionando o pé para baixo durante a fase de balanço na corrida.

(N.T: O Terra Romeno é o levantamento terra com o joelho semi-flexionado, como mencionado anteriormente. Quanto à puxada na polia com a perna reta, tradução livre de “straight leg cable pulls”, o termo dá margem para diferentes interpretações, tanto pode ser o exercício em cadeia aberta da imagem abaixo, como um levantamento terra feito com cabo, como no vídeo em seguida).

Prevenção de lesões nos isquiotibiais: Exercício de extensão do quadril em pé com polia.

(N.T: Abaixo a sustentação de uma posição do quadril estendido em isometria com o peso corporal.

Na sequência, um vídeo mostrando não somente o exercício isométrico similar usando bastante carga, mas uma maneira interessante de sua aplicação na reabilitação de uma lesão no tendão do bíceps femoral. O atleta está com o pé numa plataforma de força, o exercício foi usado também como uma avaliação do progresso do pico de força que poderia ser gerado na extensão isométrica do quadril).

 

“Joelho sobre o Quadril”: A flexão do joelho direciona o trabalho. A Flexão Nórdica (extensão excêntrica do joelho) e as variações de “flexão de joelho – deslizando” caem nesta categoria. Estes exercícios parecem contribuir mais para a prevenção da abertura do joelho durante a fase de balanço da perna na corrida, para que o pé esteja efetivamente em posição de ser empurrado contra o solo.

 

 

Confira a parte 2 do artigo: Prevenção de Lesões nos Isquiotibiais – Parte 2

 


Artigo original: Modern Hamstring Injury Prevention: A Holistic Approach.

Instituto Fortius